quarta-feira, 10 de março de 2010

 


Folhas suicidas, mangas kamikazes


    Não digo que estava atrasado. Essa não é condição para que eu corra. Nunca foi. Fato é que ia para a faculdade e passava entre uma dúzia de mangueiras que vigiam o caminho. Ventava. Nem frio, nem quente: úmido. Chovera há pouco, e algumas gotas vagavam desgarradas. Há um mês aquelas árvores estavam em flor, mas naquela manhã nublada alguns frutos tímidos se mostravam. Meus braços num movimento ensaiado impulsionavam meus passos: ora o direito para frente, ora o esquerdo – contínuos, opostos, obstinados. Foi quando o incidente aconteceu: uma corrente de ar menos sutil fez com que um dos frutos saltasse da copa de umas das árvores e acertasse, de forma intermediária, minha mão. Tal foi a violência da pequena manga, que desarranjou o sincronismo das idas e vindas. Um pequeno roxo estabeleceu a veracidade do encontro.
    Certa noite, meses mais tarde, passando pelo mesmo local, conversávamos sobre uma pomba morta que havia caído sob minha cabeça – mas essa história, conto depois. Subitamente uma rajada de vento animou as árvores e refrescou-me a memória. Como falávamos de coisas que nos utilizam como intermediários no caminho para o chão, relatei o caso da manga. Entre poucos risos, minha amiga – uma poetiza dessas de blogs e papeis avulsos rabiscados – contou que conhecia e já havia contemplado em um de seus escritos algo sobre folhas suicidas, mas nunca mangas. Refleti e manifestei minha objeção (não que a manga me cause rancor, de forma alguma): “Fui vítima de uma manga assassina! Foi um ataque. Não era apenas suicida, era kamikaze!”. Alguns segundos e a síntese veio em contrapartida: “Verdade, folhas são suicidas, mangas kamikazes!”.
    Instigante, não? 
    Durante a noite peguei-me a matutar como é curioso esse devir entre experiência cotidiana e divagar filosófico. O que seria dos poemas e devaneios não fosse o vivenciado diariamente? Por outro lado, o habitual não cultiva em sua gênese todo o poético? Folhas e mangas são fatos, são materialidade, são objetivas. Seus movimentos poderiam passar despercebidos no caos variável mundano, não fossem eles capazes de nos atravessar e provocar afetações diversas: da fascinação a mais sublime indiferença.
    Penso que a criatividade não nasça de uma instância interna e desconhecida, mas sim do contato. Das apresentações, dos reconhecimentos. Relacionar-nos com aquilo que nos cerca implica em transcender, por meio de prazer ou dor, seus significados e, em movimentos de negação ou afirmação, produzir o novo. Novo é mutável, é o que já passou e ainda nem surgiu. É o viver com todas suas implicações. Esforço atroz.
    Folhas suicidas, mangas kamikazes. Cenas cotidianas e devir poético. Na verdade, não se trata de permitir que o toque adentre a pele?


Imagem: SamUH!
Texto: SamUH!

5 comentários:

  1. Caro futuro psicólogo e cineasta. Se você trabalhasse na PROEX você veria não uma manga suicida/assassina, mas um exercito de kamikases. Quem trabalha lá sabe que aquelas mangueiras são más. Sempre balançando e dançando sueus galhos apenas esperando uma inocente cabeça passar por elas. Nós estagiários/extensionistas achavámos que elas só queriam nos dar suas deliciosas e dulcíssimas frutas. O professor Ricardo do Lições da Terra que o diga. E a barriga dele também jamais irá esquecer.

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  2. Tens toda razão. O que seria do poético sem o cotidiano? Não acho que haveria algo real se não fosse pelos acontecimentos na vida dos poétas, é dai que vem a principal inspiração!

    Seu texto é sensível, como sempre, e realmente mostra um olhar diferenciado por uma situação simples, como o cair de uma manga. ^^

    Parabéns! Um abraço.

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  3. A veracidade dos encontros, para além de toda materialidade, se estabelece na capacidade que tem de nos marcar....

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  4. Só há algo a comentar:
    Folhas são suicidas e mangas, kamikases.
    FATO!

    E o cotidiano é tão mais sublime quando visto dos seus olhos ^^

    Beijo, Samuh!

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  5. Céus! Fiquei cinco minutos em transe... por conta de uma manga. E de folhas... e de uma escrita clara, mas intensa, delicadamente madura. Amei! Estou a te seguir, rapaz.

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