domingo, 21 de março de 2010


Abundância 

"Sei que poderia ganhar milhões com minha bunda... mas optei por trabalhar em troca de um salário... 
Fazer o que? Tem gente que gosta de ser medíocre. 
A gravidade atua, a bunda cai... é um caminho sem volta".

Imagem: autor desconhecido
Autor: b'slt

quarta-feira, 10 de março de 2010

 


Folhas suicidas, mangas kamikazes


    Não digo que estava atrasado. Essa não é condição para que eu corra. Nunca foi. Fato é que ia para a faculdade e passava entre uma dúzia de mangueiras que vigiam o caminho. Ventava. Nem frio, nem quente: úmido. Chovera há pouco, e algumas gotas vagavam desgarradas. Há um mês aquelas árvores estavam em flor, mas naquela manhã nublada alguns frutos tímidos se mostravam. Meus braços num movimento ensaiado impulsionavam meus passos: ora o direito para frente, ora o esquerdo – contínuos, opostos, obstinados. Foi quando o incidente aconteceu: uma corrente de ar menos sutil fez com que um dos frutos saltasse da copa de umas das árvores e acertasse, de forma intermediária, minha mão. Tal foi a violência da pequena manga, que desarranjou o sincronismo das idas e vindas. Um pequeno roxo estabeleceu a veracidade do encontro.
    Certa noite, meses mais tarde, passando pelo mesmo local, conversávamos sobre uma pomba morta que havia caído sob minha cabeça – mas essa história, conto depois. Subitamente uma rajada de vento animou as árvores e refrescou-me a memória. Como falávamos de coisas que nos utilizam como intermediários no caminho para o chão, relatei o caso da manga. Entre poucos risos, minha amiga – uma poetiza dessas de blogs e papeis avulsos rabiscados – contou que conhecia e já havia contemplado em um de seus escritos algo sobre folhas suicidas, mas nunca mangas. Refleti e manifestei minha objeção (não que a manga me cause rancor, de forma alguma): “Fui vítima de uma manga assassina! Foi um ataque. Não era apenas suicida, era kamikaze!”. Alguns segundos e a síntese veio em contrapartida: “Verdade, folhas são suicidas, mangas kamikazes!”.
    Instigante, não? 
    Durante a noite peguei-me a matutar como é curioso esse devir entre experiência cotidiana e divagar filosófico. O que seria dos poemas e devaneios não fosse o vivenciado diariamente? Por outro lado, o habitual não cultiva em sua gênese todo o poético? Folhas e mangas são fatos, são materialidade, são objetivas. Seus movimentos poderiam passar despercebidos no caos variável mundano, não fossem eles capazes de nos atravessar e provocar afetações diversas: da fascinação a mais sublime indiferença.
    Penso que a criatividade não nasça de uma instância interna e desconhecida, mas sim do contato. Das apresentações, dos reconhecimentos. Relacionar-nos com aquilo que nos cerca implica em transcender, por meio de prazer ou dor, seus significados e, em movimentos de negação ou afirmação, produzir o novo. Novo é mutável, é o que já passou e ainda nem surgiu. É o viver com todas suas implicações. Esforço atroz.
    Folhas suicidas, mangas kamikazes. Cenas cotidianas e devir poético. Na verdade, não se trata de permitir que o toque adentre a pele?


Imagem: SamUH!
Texto: SamUH!