quarta-feira, 20 de janeiro de 2010



Nada melhor que um Psicanalista bêbado



   Lá estavam os dois, sentados na calçada daquele bar que frequentam aos domingos à tarde. Já era noite e em suas faces lágrimas corriam vagarosas. Enquanto algumas mesas espiavam a cena curiosa, palavras eram proferidas na tentativa de encerrar, de alguma forma, aquele sofrimento: “Me desculpe, amor. Eu não devia ter falado assim...” – “Não, não peça desculpas. Você disse a verdade... agora não importa mais...”. Abraçaram-se, beijaram-se. Decidiram voltar para a mesa e à companhia de suas amigas.
   Ao retornarem à mesa, elas não estavam mais sozinhas. Às duas, juntou-se um senhor (e que ele me perdoe por esse termo, mas no meu fazer literário terei que reduzir a experiência a alguns adjetivos – são os infortúnios e a beleza da escrita). Um daqueles que com cerca de 50 anos – mais tarde descobriram 52 –, mas que conservam ar jovial. Uma das amigas, disse: “Gente, esse é o Augusto. Ele sentou aqui pra conversar com a gente”. “Muito prazer”, disse o homem, trocando o cigarro de mão para cumprimentar os dois rapazes. Nitidamente, estava bêbado.
   Pela cena inusitada e a expressão das amigas, logo perceberam que a noite lhes reservava algo. Não tardou a descoberta.
   A mesma amiga complementou: “Ele é psicólogo” – uma daquelas curiosidades que, supostamente, nos ajudam a compreender um pouco mais o rumo que as coisas tomam. De pronto, retrucou: “Não me reduza. Não aprecio definições. Daqui a pouco começaremos a enquadrar cada um em uma categoria. Não me defino. Acho que o ser não pode ser reduzido. Sou psicólogo, mas muito mais... Ah-há-há-há Ah-há-há!” – soltou uma gargalhada aguda e desinibida, quase ofensiva. Imediatamente fitou a todos, especialmente os rapazes. Examinou com o olhar por cima dos óculos de armação grossa e moderna, estando o cotovelo apoiado na mesa e o cigarro na mão direita, entre os dedos indicador e médio, na altura dos olhos. Mais tarde viria a constatação que depois de cada gargalhada o psicólogo retornava a esse estado. Um ar esnobe. Certa classe. Exalava finesse. Diria que era uma mistura de Clodovil Hernandes e... Bom, acho que Clodovil não se mistura.
   Os rapazes, que de início estampavam um semblante triste, rapidamente cederam às gargalhadas de Augusto. Não tanto às piadas, sim às gargalhadas.
“Sem querer me reduzir, mas já o fazendo, sou estudante de psicologia” – disse um dos rapazes. Retomando sua postura altiva, mas com o equilíbrio comprometido, olhou fixamente nos olhos do rapaz: “Fez uma bela escolha” – seus olhos ocasionalmente vagavam em busca de apoio – “Psicologia é um curso muito bom. Freud era um grande cientista. Eu amo Freud. As coisas que ele disse são sensacionais. Para citar, gosto muito de um texto onde ele diz que admira muito os artistas” – breve pausa para mais um gole de cerveja – “Disse que os artistas são muito corajosos, os admira, pois um artista é capaz de pegar suas economias da caderneta diária, esse dinheiro pra comprar alface” – ênfase na palavra “alface”, um tom quase profético e um último trago – “Pegam esse dinheiro e fazem uma viagem! Ou são capazes de pegar toda a mobília da sala e queimar” – aproximou-se dos jovens e sussurrou: “Supondo que estamos no inverno... Ah-há-há-há Ah-há-há!”. Examinou-os com desconfiança e retomou a expressão de seriedade cambaleante. Prosseguiu: “Pegam o sofá e todo o resto e queimam para aquecer a modelo da pintura. Afinal, a modelo da pintura é o que importa. Não se apegam aos objetos. Fico pensando que nós nos apegamos demais aos objetos... Posso filar mais um cigarro? Hoje saí para filar cigarros! Ah-há-há-há Ah-há-há!” – retomou a expressão de seriedade, aproximou-se dos jovens e complementou: “Mas só hoje! Ah-há-há-há Ah-há-há!”.
   Meio trôpego, refez o aspecto reflexivo. Esperou o cigarro.
   Um dos rapazes, o fumante, pegou uma caixa excêntrica de cigarros. Havia comprado certa vez por achar diferente e hoje, acha cafona. Enfim, seus cigarros estavam em uma pequena lata azul, em formato e desenho de geladeira que, ao ser aberta, acendia uma pequena luz de forte intensidade. O olhar difuso do psicanalista encontrou-a sobre a mesa: “Gente! Uma caixa de cigarros azul! Que inusitado! Ah-há-há-há Ah-há-há!”. Sem graça, seu dono justificou-se: “É... sei que é meio cafona mesmo...” – “Nada disso”, retrucou o admirador. “Achei um luxo” – pegou o cigarro, pediu fogo ao rapaz. Após o primeiro trago, fixou o olhar ao longe. Alguns momentos de silêncio e disse: “Posso escrever sobre esse encontro em meu diário”. Mais algumas tragadas. “Posso escrever no meu diário hoje: Conheci uma pessoa – não que eu gosto de reduções [disse atravessando o olhar por cima dos óculos em direção ao rapaz] – que tem uma caixa de cigarro azul. Achei maravilhosa! Fashion!”. Suas mãos gesticulavam em círculos a cada novo adjetivo. A cabeça pendia sutilmente para trás. As palavras foram silenciando na embriaguês.
   De repente, o apreciador de Freud e de caixas azuis de cigarro, parou por um instante olhando fixamente para as duas meninas que se beijavam. Pararam e sorriram para ele. “Vocês são muito lindas. Eu já disse isso? São mesmo. Parecem duas... Ah-há-há-há Ah-há-há!” – antes de mais uma das suas indiscretas gargalhadas disse algo em um inglês do qual seus ouvintes só identificaram “colors”. Ingeriu o último gole da sua bebida. “Verdade. Parecem as cores das pétalas de margaridas. Uma é o branco, a outra o azul. Muito belas”. Ao que tudo indica, nosso filósofo perdeu-se num emaranhado de línguas, caixas e flores.
   “Garçom, por favor, mais uma cerveja. Essa rodada eu pago. Estou amando a companhia de vocês”, disse.
   Voltando a atenção aos rapazes que se acariciavam, indagou penetrante: “Onde consigo isso?” – emitiu um olhar malicioso e uma nada sutil piscadinha ao estudante. Sutileza não fazia parte de seu repertório, ao menos, não naquela noite. Constrangido, o estudante respondeu: “Por aqui...” e indicou o bar com as mãos, num gesto circular, apontando para o ambiente que os cercava. “Ah-há-há-há Ah-há-há! Amei esse gesto! Ah-há-há-há Ah-há-há! Por aqui... Ah-há-há-há Ah-há-há!” – deliciava o psicanalista reproduzindo o citado. “Meu bem... Posso pegar mais um cigarro dessa caixa fashion?” – olhou provocante e, como de praxe: “Ah-há-há-há Ah-há-há!”. Todos riam, suas gargalhadas eram absolutamente contagiantes.
   Mais uma vez, o fumante lhe acendeu o cigarro.
   Aproveitando o ensejo, demonstrou parte do seu narcisismo: “Bom, meu bem... Olha aqui, eu sou o mais jovem entre os que têm a minha idade, entende? Ah-há-há-há Ah-há-há!” – Tragada. Olhar fixo. Expressão compenetrada. “Quantos anos você acha que tenho?” – sorriu sutilmente ao lançar o desafio, saboreando seu mistério. Uma das moças disse: “Você já falou. É 52, num é?”. “Ah-há-há-há Ah-há-há! Sim, querida. E olhe essa pele... de 30. Lógico que são cremes para a cútis. Esse é o segredo. Em Paris, evidentemente. Sabem o que é cútis?”. Sem dúvida, os jovens sabiam, mas não queriam perder o prazer hilário de ouvir a explicação de Augusto. “Bom... é a pele do rosto, queridos” – indicou com o dedo, tragou o cigarro, soltou a fumaça para o alto. Desequilibrou-se.
   Algumas cervejas... talvez muitas. Diversas gargalhadas compartilhadas. Os rapazes nem se lembravam das lágrimas de uma hora atrás.
   “O ego é muito... Gente, que papo cabeça!” – esboçou certo nojo – “Ah-há-há-há Ah-há-há! Como estou reflexivo! Ah-há-há-há Ah-há-há!” – seriedade – “Mas é verdade. Vocês são pessoas muito agradáveis. Difícil encontrar pessoas nessa idade assim, como vocês”. No bar, uma roda de sambistas se apresentava e, logo o show chegara ao fim. Imediatamente, o mais novo amigo levantou-se e aplaudiu por alguns 3 minutos. O único do bar. “Adoro samba. Esse ar carioca. No Rio é muito diferente. Aqui em Minas nada acontece. Moro em Belo Horizonte, Paris, Montreal e São Paulo” – mais uma cerveja finalizada – “Vocês não sabem o quanto somos legais, toda essa mistura. Os brasileiros deviam sair do Brasil pra ver o quanto somos legais. Gosto disso, toda essa ginga, essa mistura”. Uma piscadinha para o estudante, seguida do mesmo sorriso gentil e provocador.
   “Essa novela horrível que passava mostrava umas coisas da Índia. Tá certo, tem umas mentiras. Mas o Kama Sutra vocês conhecem, não?! Um conhecimento delicioso. Gosto muito disso, o gozo real. Porque aqui estamos falando de real. Isso é real... Gente, que papo cabeça! Ah-há-há-há Ah-há-há!” – Olhar penetrante sobre os óculos: “Como chama aquela coisa branca que a gente usa na hora do sexo? Que é de comer?” – “Chantili”, respondeu prontamente uma das meninas. “Isso! Ah-há-há-há Ah-há-há! Você conhece, neh?! Ah-há-há-há Ah-há-há!” – alguns roncos entre as risadas – “Ah-há-há-há Ah-há-há! Não é isso!” – expressão séria por uma fração de segundos – “Ah-há-há-há Ah-há-há! É outra coisa! Ah-há-há-há Ah-há-há!”. Foi o momento em que os jovens mais riram. Provavelmente, alguma piada interna.
   Próximo ao fim da noite, os jovens pediram a conta, apesar de estarem se divertindo. O psicanalista tentou argumentar para que ficassem, e mesmo com todas as gargalhadas, não os dissuadiu. Mas como todos sabem, após pedir a conta ainda temos uns bons minutos de conversa.
   Um gole de cerveja e pediu mais um cigarro. No entanto, a caixa fashion estava vazia. Augusto levantou-se e, na mesa ao lado (de alguma forma) conseguiu um cigarro. Os jovens ouviram apenas um som: “Ah-há-há-há Ah-há-há!”.
   O rapaz e o fogo, novamente. Olhar ao longe, ainda mais cambaleante, e o psicanalista continuou: “O ego é curioso. Essa coisa do ser. Já fui casado, tenho uma filha da idade de vocês. Não me arrependo, minha ex é fantástica, foi tudo maravilhoso. Mas hoje busco outra coisa. Quero encontrar alguém, sabe...” – mais cerveja, um trago, o olhar levemente abatido – “Ultimamente tenho gostado muito dos pescadores. Sabem como se identifica se um peixe está bom ou não?” – Deleitou-se com o olhar atento dos jovens. Sorriu contidamente, tragou e bebeu – “Pela escama. Tem que estar rosa. Mas não pode ser grená, tem que ser rosa. Curioso isso... conhecer pela escama. Seria interessante se nós também pudéssemos conhecer o outro pela escama. A pele” – Divagou por instantes com olhar trôpego, mas brilhante – “Essa coisa de alma gêmea. Sabe quando você encontra alguém e essa pessoa te deixa no chão? Sabem como chama?” – com olhar soberbo e esnobe se dirigiu pausadamente a cada um – “Paixão, porque é ‘pá’ na cabeça ‘e chão’! Ah-há-há-há Ah-há-há! Você fica no chão pela pessoa! Ah-há-há-há Ah-há-há!” – Cigarro na boca, aparência compenetrada – “Aqui em Minas, ainda falam que nós somos caipiras. A gente ‘cai’ e ‘pira’! Ah-há-há-há Ah-há-há! Eu tô nessa... é ‘pá’ na cabeça, cai no chão e deliro! Eu sou caipira! Ah-há-há-há Ah-há-há!”. Lacan certamente sorriu. Nesse momento, os jovens definitivamente se encantaram por Augusto. E como não o fazer?
   Chegada a conta, ele insistiu em pagar, justificando ter adorado a companhia. Tirou seu cartão, chamou o garçom, mas os jovens recusaram. Não podiam abusar de alguém tão engraçado, espontâneo e profundo, ainda que bêbado. Um fantástico ser, de um ego sublime. Freud na certa se encantaria e, obviamente, também filaria um cigarro da caixa fashion. Além do mais, como prega uma famosa campanha publicitária: “Existem coisas que o dinheiro não compra...”. Eles sabiam bem isso.
   Despediram-se. Pegaram os contatos. Cada um pra um lado. No carro, os jovens comentavam um pouco descrentes e absolutamente agradecidos. Sem dúvida, mais que um encontro inesperado. O estudante de psicologia, ao ver-se sorrindo e beijando apaixonadamente seu namorado, pensou sobre o fato inusitado. Ainda que fosse behaviorista, teve que admitir: aquela havia sido uma incrível sessão psicanalítica de casal e os resultados, mensuráveis ou não, foram os melhores possíveis. E esperou, com todas as forças, que o efeito Augusto não passasse – enquanto algo ecoava em seus pensamentos: “Ah-há-há-há Ah-há-há!”.


Texto: SamUH!
Imagem: Glennharper

8 comentários:

  1. Enfim, a inauguração... Fogos de artifício, garrafas de champagne e senso de humor "a la carte". Estamos aí pra isso. =)

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  2. Nossa cara, que demais conhecer um cara desses! ^^

    O Augusto deve ser mesmo uma figura. É nessas horas em que eu acho que a vida vale a pena. Momentos pequenos e marcantes como esse fazem toda a diferença!

    Parabéns Samuh, tu realmente escreve bem cara! Adorei os detalhes ao longo do texto e o poder de observação destacado nos gestos simples como as risadas e o jeito de segurar os cigarros.

    Continue assim, acompanharei o blog!

    Abraço, Fábio.

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  3. Aê! Um bom português escrito é o nosso alimento! Enquanto o mundo brasileiro desvia a arte dos escribas, alguns resgatam a alma da idéia primeira! Thales.

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  4. Samuuuh! Amei pra sempre xD
    Vim reforçar seu comportamento de escrever e postar textos simples e geniais! Continue assim ^^

    =***

    Zi

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  5. Quem disse que a Zi não é comportamental? rs...

    K

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  6. Boa pergunta! Quem disse que a Zi não é comportamental?

    Ori

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  7. Acho que ninguém disse... Na verdade falaram "Quem disse que a Kamilla não é comportamental?"^~ rs

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